sexta-feira, 23 de abril de 2010

Carta da Terra no mundo



A brasileira radicada na Costa Rica, Mirian Vilela, trabalha desde a década de 1990 com a Carta da Terra, uma declaração de princípios éticos e sustentáveis reconhecida pela ONU, por governos, empresas e ONGs nos cinco continentes, e há três anos está à frente do movimento internacional que divulga o documento. Aqui, conta como a Carta está ajudando a melhorar a vida no planeta

Natália Mello – Edição: Mônica Nunes
Planeta Sustentável - 21/04/2010

Quando o mundo despertou para a sustentabilidade, durante a Rio-92, a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, Mirian Vilela já era expert no assunto. Mestre em Administração Pública pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, ela foi membro da secretaria que, durante dois anos, organizou a histórica conferência realizada no Rio de Janeiro, a primeira de grande magnitude depois da Guerra Fria.

Foi naquela época que surgiu a ideia de escrever uma declaração internacional que funcionasse como uma Constituição do Planeta, com diretrizes para um mundo sustentável que englobassem temas como ecologia, justiça social e econômica, paz e respeito à diversidade. “Mas não houve acordo político para isso naquele momento e a iniciativa foi retomada no ano seguinte, fora da ONU”, conta Mirian, que participou de todo o processo trabalhando na ONG Conselho da Terra, do canadense Maurice Strong, o secretário geral da Rio-92. Até o lançamento da declaração – a Carta da Terra –, no ano 2000, foram anos de consultas e debates envolvendo gente do mundo todo.

Somente em 2006, alguns profissionais ligados à redação do documento fundaram o movimento Carta da Terra Internacional, com sede na Universidade da Paz, mantida pela ONU, na Costa Rica. Mirian Vilela, desde 2007, é a diretora-executiva da organização responsável por disseminar a declaração pelo mundo. Hoje, mais de 90 países nos cinco continentes possuem atividades baseadas na Carta.

Com a autoridade de quem participou ativamente do nascimento e da divulgação do documento, Mirian Vilela comenta a importância da Carta e os projetos que a declaração inspirou, além dos planos para este ano de celebrações.

Como está a consciência das pessoas em relação à sustentabilidade?
Ainda não é satisfatória, pois as pessoas têm consciência do conceito pela metade. Quando se fala em sustentabilidade, geralmente, o enfoque é a proteção ambiental, mas a sustentabilidade é muito mais que ecologia: ela é um balanço entre a dimensão social e a ambiental, incluindo os desafios sociais e econômicos. Nós somos educados e orientados para trabalhar de forma segmentada, mas é necessário que haja uma visão sistêmica. Se as pessoas entendessem essa integralidade, não existiria tanto desentendimento, por exemplo, entre os ministérios do Meio Ambiente, da Economia e da Agricultura dos países. Todos trabalhariam de forma integrada e sustentável pelo bem comum.

Como foi lidar com as diferenças culturais durante a redação da Carta da Terra?
Foi um processo enriquecedor e de muito diálogo. A declaração tem legitimidade justamente porque é um consenso global e foi elaborada por pessoas de diferentes raças, crenças e nacionalidades. O uso de algumas palavras foi exaustivamente discutido, por conta de seu significado para cada cultura. Os americanos, por exemplo, hesitaram em aceitar a palavra “amor” na declaração, por acharem que ela é sentimental demais. E nós brasileiros fomos cruciais para a decisão desse impasse. Explicamos que é necessário trabalhar nosso lado emocional para fazer com que tudo funcione. A redação da Carta foi uma grande troca de experiências e aprendizados.

Qual a estratégia da Carta da Terra Internacional para divulgar o documento pelo mundo?
Traduzimos a declaração para 50 idiomas e estamos trabalhando na criação de páginas na internet, no maior número possível de idiomas. Também divulgamos documentos de apoio como o Guia para Usar a Carta da Terra na Educação, voltado para educadores. Participamos de fóruns e eventos pelo mundo todo. Hoje, temos uma rede de 4.800 associados que apoiam a declaração, incluindo empresas, governos e ONGs. Mas é impossível precisar quantas entidades usam a Carta da Terra e quais projetos são desenvolvidos porque o movimento é descentralizado. Nós divulgamos a Carta, orientamos, mas não controlamos. Cada um a utiliza da melhor forma que pode.

A educação ocupa papel de protagonista nas ações da Carta da Terra?
Sem dúvida! A educação é a chave para as mudanças futuras, mas, o conceito de educação deve ser ampliado. Não é apenas nas escolas e universidades que se aprende o que é sustentabilidade. A educação informal é importantíssima. As formas de arte e a própria mídia também educam para a sustentabilidade, de uma forma mais branda, porém muito eficiente.

Quais são as iniciativas mais marcantes na área da Educação?
A Universidade Metodista de São Paulo, no ABC Paulista, está reformulando seu projeto pedagógico para inserir o ensino da sustentabilidade em todos os seus cursos. E a Carta da Terra é o documento que norteia esse processo. A UMAPAZ - Universidade Aberta do Meio Ambiente e Cultura de Paz, em São Paulo, baseia todas as suas atividades na Carta e oferece dezenas de cursos para educadores e para o público em geral. O Instituto Paulo Freire é outro bom exemplo, ele desenvolve projetos pedagógicos para escolas, com base também na declaração (Leia a resenha do livro A Carta da Terra para a Educação, que será lançado em maio, e também a entrevista com o autor do livro e presidente do Instituto, Moacir Gadotti)

O número de projetos voltados para a educação infantil parece maior do que nas universidades. Isso é real?
As crianças, realmente, aprendem com entusiasmo, mas o motivo principal é que as escolas estão mais abertas para trabalhar com a Carta da Terra do que as universidades. No ensino superior existem muitos egos, então, o diálogo é mais difícil. E nas escolas, as aulas tendem a ser mais interdisciplinares, o que facilita o ensino da sustentabilidade nas diferentes matérias.

Como você avalia o apoio à Carta da Terra pelo meio empresarial e o que está sendo feito para incentivá-lo?
A adesão do setor privado é chave e está aumentando consideravelmente nos últimos anos.
Se precisamos colocar a sustentabilidade em todos os lugares, é fundamental que os processos produtivos sejam reorientados. A atuação das empresas transita por sua relação com a natureza, com a comunidade local, com seu público interno e, até, com outros países. A sustentabilidade precisa permear todas essas áreas. Estamos trabalhando em conjunto com a GRI - Global Reporting Initiative, que já tem suas normas adotadas por inúmeras empresas. A ideia é integrar os conceitos da Carta da Terra com os conceitos da GRI.

Quais iniciativas você destaca no setor privado?
O Hilton Hotel, em Washington, nos Estados Unidos, e o Hotel Parque del Lago, na Costa Rica. Ambos realizaram treinamentos sobre sustentabilidade com seus funcionários, inspirados na Carta da Terra, para que a ética seja praticada em todas as atividades dos empreendimentos. O Parque del Lado está, inclusive, usando os princípios da Carta para basear seu planejamento estratégico.

O Brasil é um dos países mais engajados na divulgação e implantação da Carta da Terra?
Sim, a atuação brasileira é muito relevante para o movimento. O Brasil é um país muito ativo e o compromisso da sociedade civil é grande em relação a outros países. Existem iniciativas muito criativas e animadoras, como o trabalho da ONG Harmonia da Terra, que criou um jogo de tabuleiro com os conceitos da Carta. Esta é uma excelente forma de divulgá-la. O Ministério do Meio Ambiente também é um grande apoiador. O órgão tem promovido a Carta em conjunto com as Agendas 21 locais. Também existem prefeituras, como a de São Paulo e a de Goiânia, que usam o documento como norte para muitas de suas atividades.

É possível dizer que a “parceria” entre Carta da Terra e Agenda 21 facilita a disseminação e a compreensão dos princípios da Carta?
É uma ótima ideia integrar a Carta da Terra com as Agendas 21. São conteúdos complementares, que se fortalecem e se ajudam. A Agenda 21 é um guia para ações e a Carta da Terra, o fundamento. É como se um fosse o corpo e o outro a alma. A iniciativa do Ministério do Meio Ambiente brasileiro deve, sim, servir de exemplo para outros países. Na Argentina, existe um programa parecido, também liderado pelo seu Ministério do Meio Ambiente, que trabalha com Agendas 21 nas escolas, em conjunto com a Carta.

Você pode citar outros exemplos relevantes, em outros países?
Em 2005, o Senado australiano reconheceu a relevância da Carta da Terra como princípio ético e declarou apoio à sua aplicação nas políticas de educação para o desenvolvimento sustentável. O México é outro país que se destaca em suas práticas. Lá, o Ministério do Meio Ambiente coordena a aplicação do documento em diversas áreas.

O México será sede da COP16, em dezembro. Isso aprofundou a adesão do país em relação à Carta da Terra?
O México tem um envolvimento fortíssimo com a Carta da Terra, que precede a escolha do país como sede da COP16.
Em 1999, algumas ONGs do país começaram a aderir à iniciativa e, em 2002, o documento ganhou o apoio do governo federal. O Ministério do Meio Ambiente mexicano promove atividades e parcerias, principalmente na área da educação. Para se ter ideia de seu comprometimento, quase todos os governos estaduais e quase todas as universidades do país adotam a Carta da Terra. No dia 22/4, Dia da Terra, haverá uma grande celebração no país pelos dez anos da Carta, com a presença do presidente Felipe Calderón.

Como a Carta da Terra pode ajudar na busca de soluções para o aquecimento global?
A questão das mudanças climáticas é um problema de falta de ética. O dilema central para os países, hoje, é: “devo focar no interesse econômico nacional ou no bem de todos os habitantes do planeta?”. Prevalecem os interesses econômicos e essa questão ética não está na mesa de discussões. É muito difícil – eu diria praticamente impossível -, haver acordo sem uma base ética comum. Na COP16, vamos lutar para que a Carta da Terra seja aceita como essa base ética.

As mudanças climáticas e o aquecimento global levaram as questões ambientais para a vida diária de todo o mundo. Como está a parceria entre a Carta da Terra e as grandes organizações ambientalistas?
O apoio dessas organizações é fundamental e elas já representam uma parcela grande de nossos associados e colaboradores. A adesão à Carta da Terra ocorre de forma diferente em cada nação e existem muitos países nos quais as organizações ambientalistas são as líderes do processo. Na Alemanha, por exemplo, a Friends of the Earth é um dos principais parceiros da Carta da Terra e, na Itália, é a ONG Pronatura. A WWF reconhece e apoia a Carta, assim como o Greenpeace. No Brasil, o processo de consulta da Carta da Terra, entre 1997 e 1998, foi liderado pelo Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o meio Ambiente e Desenvolvimento, com a participação de um número grande de organizações ambientalistas.

Após dez anos de difusão da Carta da Terra, quais foram os principais resultados alcançados?
O reconhecimento da UNESCO, em 2003, foi a maior vitória. Naquele ano, a Conferência Geral da UNESCO, que reúne todos os ministérios de educação dos países membros da ONU, adotou a Carta da Terra como documento base para a Educação para a Sustentabilidade. O apoio da IUCN - World Conservation Union, a maior organização ambientalista do mundo, é outro fato relevante.

Para finalizar a entrevista, diga como as pessoas podem participar da iniciativa.
Cada um pode usar a Carta da Terra como bússola para as suas atitudes pessoais, agindo com respeito e amor ao meio ambiente e aos seus semelhantes. Se queremos que o documento norteie as decisões de governos, empresas e ONGs, nada mais coerente que começarmos por nós mesmos. Como dizia Gandhi, “Seja a mudança que você quer ver no mundo”.

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